Grupo Unamérica: Há 36 anos cantando a resistência da latinoamérica
Em bate-papo com o BdF RS, Zé Martins e Dão Real falam sobre trajetória artística e contexto político e cultural do país
Fabiana Reinholz, Katia Marko, Gilmar Eitelwein e Juarez Fonseca Brasil de Fato | Porto Alegre | 28 de Fevereiro de 2020
O ano era 1983! A ditadura militar brasileira dava seus últimos suspiros. Foi uma das mais longas do continente. Nesse ano começavam os primeiros passos para retomada da democracia. Se vivia o clima das Diretas Já! Neste contexto surge o Grupo Unamérica, resgatando e trazendo à luz, canções de resistência, compostas por los hermanos latino-americanos, nas décadas de 1960 e 1970, contra os regimes totalitários que tomaram conta do continente.
Formado originariamente por Dão Real, Zé Martins e Protásio Prates (já falecido), ainda participou da formação inicial o músico e compositor Luis César de Oliveira. Também fizeram parte desta história os músicos Delcio Beleza, Cláudio Nilson, Betinho, Toninho Cardoso, Rodrigo Ruivo, Carlos Walter Soares, Luciano Camargo e Adilson Jóia e Joca Przyczynski.
Pelas mãos e voz de Zé Martins e Dão Real, Mercedes Sosa, Daniel Viglietti, Victor Jara, Violeta Parra, Los Olimareños, Atahualpa Yupanqui, Alfredo Zitarrosa e tantos outros tomavam conta dos CTGs, universidades, festivais e palcos do sul do Brasil, em um ambiente marcado pela colonização alemã.
Trinta e seis anos depois, o grupo segue cantando a resistência contra um ataque à democracia cada vez mais presente. Marcado por discursos saudosistas à ditadura, e mais recentemente pelo presidente convocando a população para uma manifestação anti-congresso,o novo projeto do grupo vem num momento crucial. O trabalho Canções para Tempos de Cólera, que está com campanha de financiamento, traz quatro canções para tempos de luta, entre elas uma versão em português do hino chileno El Pueblo Unido Jamás Será Vencido. Também estão sendo gravadas e serão disponibilizadas gratuitamente as músicas Festa da Colheita, Pachamama e Canção Campesina.
De pie, cantar
Que vamos a triunfar.
Avanzan ya
Banderas de unidad.
Y tú vendrás
Marchando junto a mí
Y así verás
Tu canto y tu bandera florecer.
La luz
De un rojo amanecer
Anuncia ya
La vida que vendrá.
Em uma roda de conversa, no bar Guernica, na Cidade Baixa, bairro boêmio de Porto Alegre, os jornalistas Gilmar Eitelwein e Juarez Fonseca, mediados pela também jornalista Katia Marko, “charlaram” com os músicos sobre sua trajetória e o contexto atual.
Abaixo, trechos da conversa:
Katia Marko (Brasil de Fato RS): Gostaria de começar com vocês contando a história do grupo, que vem desde o início da década de 1980.
Zé Martins: Antes de estarmos constituído como grupo nós já tocávamos. De certa forma, todo mundo em algum momento, na sua vida, passou por um CTG (Centro de Tradições Gaúchas), dentro do Rio Grande do Sul. Há 40 anos era diferente do que é hoje, mais aberto. Tanto que quando começamos a tocar em CTGs, a nossa inquietude como músicos e já fazendo política estudantil no meio universitário, nos fazia querer mudar o tipo de música tocada nesses espaços, os ‘caras’ cantavam o latifúndio, os patrões. Pensamos, temos que fazer uma música diferente dentro do CTG, e ousadamente começamos a cantar. Cantávamos Mercedes Sosa, chegamos a fazer show cantando Maluco Beleza, do Raul Seixas, dentro do CTG. Era um sucesso. Cantávamos Milton Nascimento, Lennon e McCartney dos Borges, e a gurizada gostava. Gostava tanto que os patrões se reuniram e nos proibiram de tocar nos CTGs. Isso é antes de surgir o Unamérica.
Dão Real: Essas histórias são emblemáticas porque revelam um pouco essa mudança toda que tivemos, parece que a intolerância hoje é muito mais radicalizada do que era 40 anos atrás. Naquela época a gente ousava a fazer determinadas coisas que hoje a gente até pensaria várias vezes para fazer de novo. Porque não tem muito espaço, já tem um ambiente de muita intolerância.
A história do Unamérica surge como uma necessidade de juntar forças. Começamos tocando isoladamente em festivais. Eu fazia uma música sempre preocupada com questões sociais, questões do homem da terra, do plantador sem-terra, enfim, o Zé da mesma forma, fazendo o mesmo estilo de música. E encontramos o Protásio Prates também na mesma batida, e tentamos criar algum espaço no meio de um ambiente, às vezes, muito inóspito, em um ambiente, como o Zé falou, que idolatrava cada vez mais, e sempre, os patrões, os vencedores. E nós, como uma alternativa, uma autodefesa, pensamos, quem sabe montamos um grupo e vamos cantar aquilo que queremos independentemente de ser aceito ou não, e foi aí que mais ou menos iniciamos nossa estrada.
Desde o início tínhamos uma premissa de não se render ao comercial, iríamos fazer a música que entendíamos, naquele momento, naquela conjuntura ou em cada conjuntura ser necessária, que pudesse funcionar como um instrumento de mobilização social, mas principalmente de reflexão, do seu próprio tempo.
Juarez Fonseca: É interessante falar desse início, dessa necessidade que vocês tinham de cantar as mazelas do país também e mostrar que existia outro homem, que não só aquele cantado hegemonicamente. Coincide com a ditadura do continente americano. Estávamos cercados de ditaduras. Bolívia, Peru, Argentina, Uruguai, Paraguai. E sentíamos uma necessidade que os cantores desses países tinham, de uma certa forma se agrupar pela identificação de opressão que tinha pelas ditaduras e tudo mais. E a música, em especial a Argentina, mas também a chilena, a música de protesto, engajada, tinha uma tradição mais antiga do que aqui, do que a nossa, que é mais ligada a uma tradição mais nordestina. Gostaria que vocês falassem como é que foi esse olhar de Brasil envolvendo os povos e os seus irmãos da América Latina.
Zé Martins: Em off comentávamos a respeito de músicos brasileiros que contribuíram nesse período, e dos nossos companheiros aqui do RS de estrada também. Estávamos falando de Milton Nascimento, e essa questão que o Juarez comentava de abrir-se para a América Latina, lembrei da poesia do Fernando Brant, “Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, Não vai fazer desse lugar um bom país”.
Acho que vivemos muito isso, essa proposta de virar-se para a América e entender a importância e de que o Brasil seria muito maior se tivesse unido junto com os outros países não só do Cone Sul, mas os países sul-americanos.
A música vinha cumprindo essa função, e inversamente proporcional à física, nessa questão aqui, os semelhantes se atraem. Encontrávamos Victor Jara, a família Parra (Violeta Parra), no Chile, assim como Los Olimareños, Daniel Viglietti, Alfredo Zitarrosa, a poesia de Mário Benedetti, no Uruguai, Athaualpa Yupanki chegando.
Comentávamos a importância de algumas gravadoras já entendendo que isso poderia ser um mercado, uma comercialização dessa música. Quando a Elis Regina grava Falso Brilhante, onde inclui duas composições, uma da Violeta e a outra do Athaualpa, talvez tenha sido a primeira vez que se abria esse espaço, através de uma cantora popular brasileira, cantando essas músicas relacionadas com cunho mais político, social, falando da história dessa América.
Era o momento de uma certa efervescência. Lembro que a companheira do Protásio, a Alda Fortes, comentou em uma entrevista que foi muito significativo, porque nós em Sapucaia, depois em São Leopoldo, uma cidade considerada o berço da colonização alemã nesse período, onde tudo virava-se para a Europa, nós fizemos exatamente o contrário, abrimo-nos para a América Latina, em uma cidade de cultura alemã. Um dos locais que mais tocamos ao longo desse tempo foi em Novo Hamburgo.
Nós, artistas de um modo geral, como catalisadores, as antenas abertas para o que estava acontecendo, entendíamos que era o que nós podíamos fazer. Ainda tínhamos toda aquela liberdade da inconsequência. Essa ousadia de acreditar que é possível, mesmo sabendo que é impossível, fez com que chegássemos até hoje. O Dão comentava esses dias que talvez o nosso maior sucesso nesses 36 anos é mantermo-nos vivos durante esses anos.
Dão Real: Existe nesse período um sentimento de resgate da nossa identidade, ou seja, o brasileiro nunca se enxergou como latino-americano. Latino-americanos eram os outros, os espanhóis, os de fala espanhola. Esse resgate me parece muito típico desta época, do início da década de 1980. Surgiram vários grupos, não só o Unamérica, o Tarancon, cantando músicas latino-americana, que não sobreviveram no tempo. Hoje temos pouquíssimos grupos que podem se dizer que cantam músicas latino-americanas no Rio Grande do Sul. Mas na época tinha muitos grupos que estavam surgindo e tentando encontrar um caminho neste ambiente que estava de alguma forma se abrindo. Queríamos resgatar uma condição que era negada, a condição de latino-americano, ou seja, o brasileiro se enxergar como latino-americano, ser solidário com seu irmão latino-americano, ter solidariedade de identidade, se sentir identificado com seu irmão latino-americano. Essa era a ideia que estava por trás, o nome do grupo tinha essa concepção.
Zé Martins: Nós nunca nos preocupamos muito com a música, ela nunca foi a nossa prioridade, a letra sim. O que nos chamava atenção era poder dar o recado, poder dizer que tinham coisas erradas, que nos inconformávamos com algumas coisas que vinham acontecendo, isso até hoje.
Juarez Fonseca: Foi importante nessa época também a mobilização das universidades brasileiras. O público que essa música tinha era da universidade, dos universitários, porque essas músicas, exceto Elis Regina que tu citas, cantando Los hermanos, Gracias a la Vida que tocou bastante no rádio, grupos como Tarancon, Raices de America, que eram formados por músicos de diversos países, e outros grupos, a universidade assumia e dava espaço. Era época da imprensa alternativa no país, como o jornal Versus, que era dirigido por um gaúcho, o Marcos Faerman, promovia grandes shows com esse tipo de música em São Paulo, e iam multidões de universitários. Um dia quando o Noel Guarany estava participando de um movimento nas universidade, o show foi cancelado 15 minutos antes de ser realizado em São Paulo, porque a polícia proibiu o show.
Tinha esse fator importante da mobilização universitária que depois se arrefeceu nos anos 1990, e hoje a universidade recém quer retomar alguma coisa, mas mesmo assim ela ficou muito prejudicada, pela crise brasileira, pela disputa de mercado e aquelas coisas todas, assim, perdeu um pouco a consciência crítica que tinha antes.
Katia Marko: O próprio Unamérica nasceu dentro da Universidade, na época vocês (Dão e Zé) estudavam na Unisinos…
Gilmar Eitelwein: Eu queria comentar, como vocês falaram, não faziam muito o perfil dos frequentadores do CTG, vocês surgiram no meio, se apresentando nesses espaços porque, de certa forma, era o lugar que estava se criando nesse momento, além das universidades, dos centros acadêmicos. Ali, via CTGs, festivais nativistas é que se cria o grande mercado para as músicas do RS, mas vocês não têm essa identificação, não são um grupo que surgiu voltado para esses espaços, fazer essa disputa nos festivais. Vocês tinham outra proposta que era o resgate da música latino-americana, que inclusive sempre teve muita rejeição dentro do movimento nativista, dos CTGs especificamente, do movimento tradicionalista gaúcho. A própria Califórnia da Canção teve problemas com a questão da linguagem, que chegou a proibir apresentação com sotaques castelhanos. E isso foram movimentos de ruptura, os festivais foram se abrindo, festivais mais livres.
Queria comentar aquilo que o Dão colocou no início, o surgimento de vocês, no momento que começa a abertura política, e onde começa toda uma efervescência cultural, um resgate da cultura de outros países que também estavam enfrentando ditaduras fortíssimas, e que a cultura, a arte, a música, especialmente, vem na contramão, vem fazer resistência, abrir as portas para o surgimento de muita gente. Além do pessoal que estava voltando para o Brasil, que foi exilado em outros países, e que também traz um monte de informações desses países, da música, dos movimentos sociais. E essa questão da ruptura que na época houve, no início dos anos 1980 e que os CTGs e os festivais faziam um pouco de vistas grossas e que tinha também muita resistência.
Hoje, vemos de certa forma o inverso, vivemos uma democracia, e estamos caminhando para uma espécie de volta à ditadura. Um governo que está se enchendo de generais, do exército, para governar. E com isso a questão dos costumes, um debate forte, muito preconceituoso em relação a muitos movimentos. Vemos, de certa forma o início de um fechamento, ao contrário da época que vocês estão surgindo, que era uma abertura. Diante disso, a importância do trabalho de músicos, artistas como vocês, torna-se fundamental para a resistência. Os tempos estão bem ‘bicudos’, e exigem, de certa forma, retomada de muitas lutas.
Zé Martins: Para ilustrar esse momento, queremos tocar trechos de duas músicas, Cio da Terra, e La Carta, de Violeta Parra
Juarez Fonseca: Gostaria que vocês falassem um pouco mais sobre como vocês sentiram na época, a aceitação da música de vocês e da música latino-americana e o que motivou, que músicas vocês buscaram ouvir lá fora.
Zé Martins: Quando nós começamos éramos jovens, ligados ao movimento estudantil universitário, principalmente, e nós cantávamos as coisas que essa gurizada, da nossa faixa etária também gostava de ouvir, então tínhamos uma boa aceitação. Quando cantávamos em espanhol nos CTGs, a maioria deles não entendia o que se cantava. Cantávamos Mercedes Sosa que era uma cantora da Argentina, e eles tinham muito relação com o folclore, as Chacareiras, escondido, el gato, folclores argentinos que também se fazia junto com folclore do Rio Grande do Sul.
Falávamos exatamente a linguagem que aquela gurizada, da nossa mesma faixa etária, estava querendo ouvir. A gente cantava também Belchior e os músicos da época que faziam sucesso. Aqui na UFRGS chegamos a participar de Peñas, com o grupo Saracura, junto com o Mário Barbara, Hique Gomez, Nico Nicolaiewsky, Bebeto Alves, gurizão na época, Nei Lisboa, que nesse período estava começando. Nos encontrávamos nesses espaços para cantar, havia essa identificação.
Juarez Fonseca: Naquela época tinham muitos estudantes de outros países latino-americanos estudando aqui com bolsas, intercâmbio. Então essas pessoas trouxeram também a sua música
Dão Real: A gente só entende mesmo depois de um determinado distanciamento para ver, mais ou menos, a importância daquilo que a gente fazia na época. O Gilmar colocou uma questão interessante em relação a esse paradoxo de se comparar aquele período do início da abertura, e que havia movimentos que resistiam a própria abertura, e que de certa forma, se relacionam com costumes, tradições, enfim, resistem um pouco a essa abertura. E a gente enfrentava, de alguma forma, essa resistência quando nos relacionávamos mais com esse grupo de CTGs, de rodeios. Por outro lado, tinha uma pressão, ou uma aceitação muito boa no ambiente universitário, que era um ambiente de abertura, dos movimentos políticos dentro da Universidade. Tocávamos dentro da Casa dos Estudantes, tinham músicos lá dentro que estavam todo o tempo tocando, e chamavam o pessoal da universidade.
Estávamos trazendo músicas novíssimas, músicas do início da década de 1970, e que eram desconhecidas do Brasil, músicas da Violeta Parra, Victor Jara. E aí quando se compara com o movimento de hoje, parece que é a mesma coisa que está acontecendo, mas pelo lado inverso. Aquela resistência que ficou na questão dos costumes, das tradições, resistência à abertura, agora a resistência é se juntar para resistir ao fechamento. E é sempre pelo mesmo caminho, pelo caminho dos costumes. O que acontece hoje é um absurdo conservadorismo de costumes, estamos voltando a situações absurdas que já tínhamos ultrapassado há muitos anos. É uma nova onda de conservadorismo de costume, mas ultra liberal do ponto de vista econômico, totalmente entreguista. Parece que uma coisa alimenta a outra, para poder liberar a economia para interesses financeiros é preciso controlar o povo através dos costumes. E é isso que parece que está acontecendo hoje, e os focos de resistência que na época se dava na área dos costumes agora vai se dar em outro ambiente, ou seja, no ambiente de manter a abertura funcionando.
Juarez Fonseca: Está se aprontando, ainda que um pouco silencioso, uma reação da classe artística musical. Passado esse período de espanto e torpor, voltar a fazer canções de protesto, reunião de gente para cantar contra o estabelechiment, contra esse estado de coisas que se formou. É aquela coisa de sístole e diástole, anda para trás e anda para frente. Está no momento da música se articular de novo, surgir gente nova, não pode ser mais o Chico, Caetano, eles já tiveram sua época, continuam ativos, mas não vão fazer mais esse tipo de coisa, tem que ser gente jovem, que pegará essa história e cantar o seu tempo, que não está sendo cantado, só umas pincelas estão sendo feitas, mas não é como era naquela época dos festivais de televisão, quando começou as canções de protesto, multidões que se reuniam com espírito político, de reação.
Zé Martins: Estamos vendo agora no carnaval, a Mangueira, por exemplo, e outras escolas que estão trazendo esses temas…
Gilmar Eitelwein: Essa nova resistência está se fazendo em um período de extrema dificuldade, muito maior do que nessa época que estamos falando. Hoje está tudo diluído. É difícil encontrar uma base sólida para agrupar novamente as forças, as canções, os artistas, uma causa específica. Parece, por incrível que pareça, que a causa hoje vai ser de manter os avanços que se conseguiu, com base diluída, o movimento estudantil enfraquecido, o sindical e os sociais discriminados, abafados, condenados pelo sistema.
E também a questão da comunicação que está extremamente fragmentada, as redes sociais sob um domínio do poder econômico que conseguiu controlar o possível poder que as redes sociais teriam de mobilização popular, de informação. Nos tempos que vivemos é muito mais difícil organizar uma resistência, unificar uma pauta.
Katia Marko: A música é fundamental para formação do ser humano. O que se ouve nas rádios nas últimas décadas, em especial a partir dos anos 1990, com o neoliberalismo entrando mais fortemente, e também uma massificação cultural, em que, por exemplo, sertanejos e pagodes é só o que são ouvidos nas rádios. O que forma atualmente as crianças, adolescentes, qual é a formação cultural e musical que se tem?
Zé Martins: Não é o sertanejo ou o pagode que é ruim, são as letras. Esse mercantilismo todo com a cultura, em particular com a música, transformou as músicas, mesmo boas, em descartáveis. Uma música não pode ser boa só enquanto dura a novela, por exemplo. Essa música descartável, que repete na realidade é mais do mesmo, e faz com que a gente não consiga desenvolver um pensamento crítico. O estudante ou adolescente não é instigado a pensar. Na época quando começamos, compúnhamos, saíamos pelo Brasil de carona e vivíamos escrevendo, sem saber para que, havia uma necessidade quase compulsiva de se criar.
Gilmar Eitelwein: A música de identificação cultural com os movimentos sociais, com a sociedade, com o folclore, com o regional, não tem onde circular mais, a não ser em suas próprias redes. A cultura, a música não circulam mais. A luta que tivemos aqui para manter a FM Cultura e a TVE, e a muito custo mantivemos. Onde circula essa música com identificação cultural, não estou falando dessa música de cultura de massa que é o que as pessoas ouvem direto no rádio, na TV.
Juarez Fonseca: Os paradigmas vão ter que mudar, ninguém vai ficar esperando ser o que era, alguma coisa nova vai acontecer para o bem ou para o mal.
Zé Martins: Fazendo uma auto crítica, nós deveríamos ter cantado muito mais Chico Buarque, Milton Nascimento, Belchior para que não acontecesse o que está acontecendo hoje, de muitos vivendo como os seus próprios pais, mantendo os mesmos valores, e às vezes até mais conservadores do que os pais foram.
Mas apesar de tudo isso, avançamos internacionalmente, fizemos parte do movimento Canto de Todos, uma confraria de trovadores presidida pelo músico da nova trova cubana, Vicente Feliú. E o Vicente nos trouxe em 2010 uma missão, que era musicar os poemas do poeta cubano Antonio Guerrero, que estava preso em Miami, há 12 anos, com uma condenação perpétua. E essas poesias que o Antonio fez em novembro e dezembro de 2009, nós recebemos no Fórum Social Mundial em 2010. Os poemas foram entregues ao Unamérica, ao Pedro Munhoz e o Raul Ellwanger, e surge o CD Pássaro Poeta. Levamos sete anos fazendo esse trabalho, pago com nossos recursos, sem patrocínio de ninguém, músicos que trabalharam conosco aqui do Rio Grande do Sul, de outros estados e países como Argentina, Cuba, que gravaram espontaneamente. É um trabalho de poesia. Esses textos do Antonio falam de amor, que é a grande forma de mudar o mundo. E as poesias são todas falando de amor, com raríssimas exceções.
Dão Real: Temos também o sentimento que não se pode ficar como está. Esse processo que está em curso precisa ser interrompido. O meio todo construiu um ambiente onde esse tipo de música (protesto, contestação) só acontece por iniciativas individuais e sacrifícios individuais, quem vai viver de música certamente não vai fazer esse tipo de coisa. Temos que estar disposto a encontrar gente que use a música para algo maior do que simplesmente a música, contrariando frontalmente todo o paradigma atual. Esse trabalho do Pássaro Poeta é um trabalho de resistência, a gente traz para o Brasil uma figura absolutamente desconhecida no país, que é o Antonio Guerrero, depois que ele já estava há mais de 10 anos preso injustamente nos Estados Unidos, e a gente traz as poesias dele cantadas por nós. Isso talvez ajude a construir um movimento de resistência.
Hoje a resistência é o amor porque a onda é do ódio, tenho que ir com o amor, que é única forma de combater o ódio. Quando a gente consegue dar uma leitura política a uma poesia de amor, como são as poesias do Antonio Guerrero, acho que a gente consegue, de alguma forma, encontrar um instrumento para seguir a luta, seguir fazendo a resistência.
Uma das alternativas é a gente conseguir trabalhar nas escolas, fazer com que essa música seja acessível dentro das escolas, esse me parece um caminho importante para construir novas gerações.
Assista à roda de conversa completa:
Edição: Katia Marko e Marcelo Ferreira
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